O conteúdo “Sem achismos: O que é e para que serve a análise pericial?” é de autoria de Antonio Carlos Vendrame e foi escrito para a revista Proteção, em março de 2021.
Muitos, incluindo alguns peritos, imaginam que o enquadramento pericial é realizado pelo simples cotejo da capitulação legal com a atividade fática. Lamentavelmente, quem pensa assim desconhece a análise pericial necessária num enquadramento, seja de insalubridade, seja de periculosidade.
Mais lamentável ainda é ver que os próprios operadores do Direito, especialmente juízes, querem transformar a insalubridade e periculosidade em institutos autoaplicáveis, tomando a análise pericial algo supérfluo.
Gosto sempre de fazer analogias para transformar aqueles que estou ensinando em seres empáticos.
A doutrina americana (clássica) distingue duas espécies de normas quanto à aplicabilidade: as normas autoexecutáveis (self executing) e as nomas não autoexecutáveis.
Normas na análise pericial
As normas autoexecutáveis são aquelas que podem ser aplicadas sem a necessidade de qualquer complementação, são normas completas, que se bastam.
Por outro lado, às nomas não autoexecutáveis dependem de complementação legislativa antes de serem aplicadas.
São as normas incompletas, as normas programáticas (que definem diretrizes para as políticas públicas) e as normas de estruturação (instituem órgãos, mas deixam para a lei a tarefa de organizar o seu funcionamento).
Será que existe alguma lei em nosso ordenamento jurídico que seja integralmente autoexecutável?
É exatamente por isso que existe o Judiciário e os operadores do Direito, para sanarem dúvidas sobre a aplicação concreta da lei.
Enquadrar insalubridade ou periculosidade sem uma profunda análise é o mesmo que julgar um processo sem ter conhecimento dos autos!
A interpretação das normas exige conhecimento
A interpretação das normas em Segurança e Saúde no Trabalho exige conhecimento técnico dos profissionais que a estão aplicando.
Assim, é impossível que alguém leigo na área técnica consiga traduzir com exatidão aquilo que a lei pretende expressar.
Plor ainda é quando o profissional técnico encarregado de realizar uma perícia, que deveria possuir tais conhecimentos, ou por ignorância, ou por dissimulação, opina contrariamente a tais princípios.
A perícia judicial tanto exige a interpretação da legislação, que se assim não fosse, não haveria a necessidade de nomeação de um profissional técnico para a realização de tais trabalhos.
Se desnecessário fosse a ótica técnica, o próprio Juízo, em audiência, supriria a perícia judicial.
Laudo e a análise pericial
A análise pericial é o elemento que dá sustentabilidade a laudo pericial. Sem a devida análise pericial, o laudo é frágil, inconsistente e refutável, tornando o perito bastante vulnerável ao tentar justificar seu trabalho.
Vamos apresentar alguns casos clássicos. Como enquadrar uma atividade como perigosa por infamáveis sem a demonstração de que tais inflamáveis poderiam se incendiar?
Imagine uma loja de tintas, a qual possui centenas de latas de inflamáveis, num minúsculo espaço. Afirmar que quem trabalha em tal local está exposto ao perigo é muito fácil. Difícil é provar que tal condição é perigosa!
Simplesmente encontrar uma atividade e área de risco que sejam idênticas ao caso periciado não é tarefa árdua. Agora, demonstrar que existe perigo na atividade realizada é outra história.
As análises de risco tradicionais prestam-se muito bem a tal comprovação. E mais importante que demonstrar a existência do perigo é verificar a existência das medidas de proteção.
Ainda com relação aos inflamáveis, delimitando o exemplo para os infamáveis líquidos, é preciso saber como um líquido inflamável se transforma em princípio de incêndio.
Normalmente um líquido inflamável se encontra em vasilhame ou tanque, quando então tal recipiente precisa apresentar um vazamento ou romper sua estrutura para que o líquido inflamável esteja em contato com a atmosfera.
É preciso lembrar que um liquido inflamável contido num recipiente fechado e lacrado jamais incendiará devido à falta de comburente (oxigênio).
Vencida a primeira etapa e, estando o líquido inflamável em contato com o ar, a próxima etapa é que o líquido se transforme em vapor, eis que o líquido não pega fogo.
E para que o líquido se vaporize, tal somente acontecerá quando este estiver à temperatura superior ao ponto de fulgor. Abaixo do ponto de fulgor um líquido inflamável não apresenta
qualquer risco.
Ignição
O próximo passo é que esse vapor de líquido inflamável se misture com o ar aproveitando o seu oxigênio, para formar uma mistura perfeita.
Diga-se de passagem que não é qualquer proporção entre combustível e comburente que entra em ignição, mas tão somente aquela que esteja entre o limite inferior de explosividade (inflamabilidade) e o limite superior de explosividade.
Abaixo do limite inferior temos uma mistura pobre e, acima do limite superior temos uma mistura rica. Tanto a mistura pobre quanto a mistura rica não pegam fogo. Assim, uma mistura explosiva tem proporções estequiométricas de combustível e comburente.
O último passo é colocar a fonte de ignição com a mistura explosiva. Não é qualquer fonte de ignição que é capaz de iniciar o fogo. Grande parte das fontes de ignição não possui energia suficiente para tal.
É como jogar um palito de fósforo aceso num recipiente contendo gasolina. Este não pegará fogo por falta de energia do palito aceso.
Para que se inicie o processo de ignição do combustível, a fonte de ignição precisa ter energia suficiente, segundo a energia mínima de ignição do inflamável.
Iniciado o princípio de incêndio, vamos falar agora das medidas de proteção contra o incêndio.
Um princípio de incêndio será facilmente contido desde que se tenha disponível qualquer equipamento de combate a incêndio, seja ele manual (extintor ou hidrante), seja ele automático (sprinkler ou bateria de gás inerte).
Outros equipamentos também são importantes, a exemplo de alarmes, detectores de fumaça ou calor etc.
Outras importantes medidas de proteção contra incêndios são as brigadas voluntárias, manutenção de bombeiros civis e treinamentos diversos.
Amparo técnico
Finalmente, se todos os equipamentos de combate a incêndio falharem na contenção do princípio de incêndio, ainda temos os bombeiros militares, que se forem acionados a tempo, conseguirão facilmente conter o que poderia ser um princípio de incêndio.
Assim, vemos que não é fácil ocorrer um incêndio. Veja quantas barreiras devem ser vencidas para que ocorra o fogo. É por essa questão que não se ouve falar em incêndios em postos de gasolina.
A principal barreira é constituída pela ventilação natural que dilui os vapores inflamáveis, impedindo a formação de mistura explosiva.
Dessa forma, fica claro que, numa perícia de periculosidade por inflamáveis, inúmeros pontos devem ser analisados antes de se emitir uma opinião com base em mero palpite, desprovida de amparo técnico.
Gostaríamos de falar dessa mesma análise para outros tipos de periculosidade e, mesmo para insalubridade, mas seria impossível dada a restrição de espaço em nossa coluna.
Mas quem sabe, numa próxima oportunidade, poderemos aprofundar a questão da tão necessária análise pericial em outras situações.
Ficou com alguma dúvida ou quer saber mais sobre para que serve a análise pericial? Entre em contato conosco. Nós podemos ajudar!